Somos Mulheres Negras, a maioria na zona sul de São Paulo, a maioria nas inúmeras periferias desse mundão, a maioria no país. Mulheres negras, pobres, mães, filhas, bissexuais, lésbicas, heterossexuais e periféricas, que cotidianamente vivem uma avalanche de opressões, hostilidades e o não menos severo silenciamento de suas vozes, sua presença, seus amores e dores. Fomos jogadas em um abismo de escuridão, inércia e invisibilidade, que naturalmente sufoca, despreza e desqualifica profundamente todo o legado e grandeza que envolve o ser mulher negra.
Para
elaborar uma reflexão com a complexidade e a humanização necessária, sobre as
vivências, conflitos e ciclos de violências que envolvem as mulheres negras, na
perspectiva das práticas da Justiça Restaurativa, se faz necessário uma boa e
generosa dose de sensibilidade, empatia e percepção. Os olhares e raciocínio
precisam estar em constante atenção, para que se atravesse a cortina de fumaça
do racismo, abandono e solidão que encobre as verdadeiras histórias das
mulheres negras, e se enxergue a realidade. Esse cuidado se estende ainda às
armadilhas sociais que perpetuam em falsas idéias de pieguices e vitimismos,
que perseguem as questões das mulheres negras.
Há
séculos as mulheres negras são projetadas e vistas como mulheres submissas aos diversos
grupos de poder econômicos e sociais. Somos vistas como as mulheres com corpos disponíveis
e sexualizados, sem a necessidade de afetividade e respeito, as mulheres que são
fortes e suportam todas as dores físicas e emocionais, as mães que podem criar
sozinhas seus filhos, as mulheres que abrem mão de suas vidas para cuidar de
outras, as mulheres que estão acostumadas a batalhar pelos seus objetivos, que não reclamam e aceitam com humildade e
gratidão, o pouco que é oferecido.
Vivemos a desconfiança em torno da nossa
capacidade intelectual nos espaços acadêmicos, profissionais e sociais, nos
empurram para os trabalhos de subserviência, condenam nossos traços, a
diversidade dos nossos corpos, a textura dos nossos cabelos, nossas escolhas
afetivas e sexuais. São milhares de estigmas, e há séculos somos condicionadas
e cobradas a corresponder expectativas, que nem sempre condiz com nossa real e
reflexiva escolha.
A
necessidade de socialização faz com que as muitas possibilidades de ser mulher
negra sejam abafadas, por tentativas de enquadramentos que não nos cabem, nem
nos contemplam. E não é permitido questionamentos, muito menos negar esse lugar
dado, pois de nós, esperam sempre aceitação e o silêncio.
Ser
mulher negra é suportar as desconfianças e estereótipos que não escolhemos, mas
que atravessam duramente o corpo e a alma, abrindo feridas latentes que não
encontram alívio, cicatrização e se perpetuam ao longo dos anos. É ter que
desenvolver ginga, malícia e aprender na marra, a manejar todas as ciladas e
desafios que são oferecidos, travestidos de oportunidades, notoriedade e valor;
é ter que levantar sozinha a cada rasteira e permanecer na estrada, pois o
cansaço e a desistência não nos pertencem, nem teremos auxílio ou consolo,
afinal nos consideram forte o bastante; é estar em punga e ser estrategista a
todo o momento, para perceber a hora certa de transitar e gritar, se quiser ser
vista e ouvida, mesmo constatando que muitas vezes ouvir não significa entender
e respeitar.
Em
uma sociedade, que vê o corpo de uma mulher negra servil e sem voz na mídia, ou
sendo arrastado pelas ruas da cidade, com a mesma naturalidade hostil, ser
mulher negra adoece a alma e mata nossos sonhos.
Nessa
trajetória de afrontamento e contínua busca pelo ser mulher negra em sua
plenitude e integridade, encontramos inúmeros dificultadores, muita omissão, pouco
preparo social e um enorme vazio nas ações voltadas às nossas especificidades. Não
somos legitimadas em nossos discursos e muito menos amparadas pelas políticas
públicas voltadas para a segurança, bem estar, saúde física, psíquica e
emocional. O racismo, machismo e misoginia atingem fortemente os espaços
públicos de saúde, educação e de leis de proteção e defesa, que deveriam como prioridade
e dever, acolher e repudiar tais práticas. As maiorias de nós dependem e
precisam desses serviços cotidianamente, portanto, também estamos submetidas às
violências que são banalmente difundidas nesses espaços.
Ao pensarmos que a maioria da população de
nosso país é mulher negra e periférica, conseguimos dimensionar o tamanho da
violência praticada, do silêncio imposto e da negação do nosso existir. É
desesperador pensar nas inúmeras e dolorosas consequências do grito entalado na
garganta e do peso nas costa da maior parcela do nosso país.
Existimos
e resistimos pelas muitas estratégias de sobrevivência que herdamos das nossas
antepassadas e obrigatoriamente desenvolvemos nos cotidianos; resistimos pelos
subterfúgios que atravessam o caminho e são transformados em oportunidades de
superação e continuidade.
Nessa
espinhosa caminhada, o tempo para o respiro, descanso e auto-cuidado são raros
e escassos. Nossos corpos respondem ao abandono e com pouca percepção, as vidas
de muitas de nós são tomadas pela dor, apatia e solidão.
Temos
um turbilhão infinito de emoções, emaranhadas e conflituosas, que também nos
traz questionamentos e reflexões profundas sobre o lugar em que nos colocaram,
os efeitos dessa subjetividade violentada e qual o caminho e lugar realmente
desejamos ocupar e seguir. O que faremos por nós, para driblar esses perigos e sairmos
do ciclo de dor e doença, uma vez que não podemos esperar ações de ninguém,
pois é latente a falta de humanidade que é dada a negros e negras.
Ao
longo da caminhada, uma certeza nos acompanha: Não aceitamos mais o lugar da
invisibilidade e silêncio, e precisamos urgentemente cuidar de nós. Dentro de
uma perspectiva contemporânea, se faz necessário desconstruir as mentiras, para
se retomar o valor e respeito à ancestralidade das mulheres negras e o
reconhecimento de suas trajetórias e contribuições no mundo.
Ser
Mulher Negra é possuir peculiaridades que nos enchem de conflitos e certezas.
Um legado extenso demais para ocupar as pequenas páginas das histórias rasas e
mal contadas que permeiam o imaginário social coletivo. As violências que
sofremos desde que nos colocaram em diáspora, não é roteiro novelesco, não é
mito, não é exagero, muito menos fraqueza! É perverso e cruel, traumatiza nossa
humanidade, marca profundamente nossos corpos, atrofia e bloqueia nossos
movimentos, nos tira a capacidade de doar e receber afeto, prazer, confiança e
paz.
Um
feliz encontro nos proporcionou mergulhar no processo de construção do Núcleo
Mulheres Negras. Juntas, abrimos um portal de possibilidades afetivas e a ampliação
dos horizontes, que muitas vezes é limitado e ofuscado pela desconfiança e auto
estima destruída. Transcendemos as imposições sociais e nos apresentamos aos
espelhos de nós, nos presenteamos de afeto, doação e acolhida, ritual
necessário para uma elaboração compreensiva e sensata das dores.
O Núcleo Mulheres Negras nasceu de um silêncio
herdado e ensurdecedor que ecoou na periferia sul de São Paulo em 2014.
Mulheres negras que já se encontravam em outras estradas e que uma vez por mês,
se juntam para elaborarem suas subjetividades conflituosas, carregadas de
dores, alegrias e alívios. Um encontro que implodiu nossos corpos, sufocados
das imposições sem escolha; transbordou alto e explodiu pelas bocas, corpos,
poros e olhar. Foi parido no grito forte, fino e estridente, que urrou aos ouvidos
menos atentos, despertou da doença racista que por muitas vezes nos deixa
inertes e nos projetou uma nas outras.
Nossos espelhos refletem igualdades e
diferenças, força e fragilidades, lágrimas e sorrisos, quando nos colocamos em
roda e olhamos umas nas outras em segredo, comungando de uma energia
acolhedora, que nos permite demonstrar somente o que desejamos, mesmo que seja apenas
naquele momento.
É urgente
sair da dor, minimizar os efeitos das violências que recebemos e dignamente
conseguir dizer não, para tudo àquilo que não aceitamos mais. Um poder que nos
possibilita traçar a continuidade ou um novo caminho, com mais saúde, bem estar
e decidir pelo que nos agrada; queremos ser mulher negra sem influências
negativas e viver somente o que desejamos em nossas vidas.
As
partilhas são repletas de momentos de fala, escrita e escuta, somos nós, nossa
própria temática. As trocas de olhares e afagos acessam memórias e lugares
esquecidos, não há espaço para o crivo do julgamento e podemos sucumbir como
vier, pois a neutralidade é sensível e amorosa. No ápice das nossas emoções, percebemos
a importância de localizar as doenças e expurgar o que não podemos mais
carregar, para conseguir buscar entendimento e alternativas mais saudáveis para
nossas vivências.
Descobrimos
e construímos um espaço potencial de vida, repleto de sensibilidade, liberto de
avaliações e pudores. Ser mulher negra é ter um universo dentro do peito e
nossa roda de amor e cura, acomodam dignamente toda essa imensidão. Podemos
escancarar tudo, ser e ter toda a intensidade que foi abafada ao longo dos anos.
E a partir de um olhar panorâmico sobre nossa herança, entrelaçada na contemporaneidade
que traz fortes dissabores e deleites, essa vivência nos projeta para horizontes
mais saudáveis e prazerosos, que acalanta nossos pesares e reafirma com
segurança, os momentos de alegria e prazer por completo, pois também nos
pertence.
É
nosso lugar de potencialidade, criado na base do amor, para a cura das nossas.
O Núcleo Mulheres Negras é feito de momentos únicos de intimidade coletiva e
pessoal. A cada história parecida com as nossas e de tantas outras, os olhares e
expectativas para a vida são renovados. Potencializar os momentos de escuta, olhar,
compreensão e afeto, nos faz perceber que existe uma trajetória conjunta e que nossa
subjetividade não pode mais ser abafada.
O
maior exercício aplicado nas práticas da justiça restaurativa é o exercício do
silêncio, para ouvir a si mesma e quem está com você. Não o silêncio doloroso da
negação e desprezo que recebemos socialmente há anos, mas o silêncio que se
relaciona e potencializa diretamente o alívio e conforto das companheiras, no
momento em que cada uma faz a sua oração, joga para o círculo de paz e para o
universo, o seu ser mulher negra, sem preocupações com o aval social, apenas deixando
fluir os sentimentos diversos.
Percebemos
que ser mulher negra é muito mais do que nós mesmas conhecemos. É aprendizado
constante, exercício de autoconhecimento e das práticas de afeto e respeito
pelas nossas histórias. Mulheres negras de diversas gerações, vivências
afetivas, sexuais, familiares e sociais, partilham e experimentam o lugar da
fala. Ouvir e confidenciar com mulheres mais velhas, crianças, mulheres casadas,
solteiras, em singulares relações afetivas, de diversas profissões, vivências e
anseios, reafirmam os propósitos que os processos de pertencimento são
individuais, mas dialogam coletivamente.
Somos
troncos de diferentes espessuras, folhas de diversas texturas e frutos de
muitos sabores, mas partilhamos da mesma raiz.
São
muitas histórias de continuidades e desconstruções que não cabem mais no
silêncio. Os séculos emudecidos, aos pouco dão lugar ao exercício da oralidade e
reaprendemos por meio da fala, a nos colocar no mundo. Uma herança fundamental
para se retomar a circularidade natural das nossas vidas, pois desejamos a
totalidade da nossa existência.
Somos
descendentes das detentoras de saberes milenares, que aprenderam na observação
e nas vivências individuais e partilhadas, com o outro e com o universo. E generosas
em atividade como sempre foram, nossas ancestrais partilharam e ainda partilham
desse conhecimento, aprendem e ensinam quem tiver ouvidos e respeito para
oferecer. Mulheres que avistam o céu prevendo dias de trovoadas, aguaceiros e
terremotos, mas com a tranquilidade e a consciência da importância do movimento
do mundo, acalentam os corações, na afirmação certeira que o brilho do sol virá
ao final da tempestade.
Deusas
da magia da vida, do sangue sagrado que fertiliza a terra, revitaliza o corpo e
carrega o próximo. Somos a continuidade, que ginga os próprios desafios,
reconhece os erros, reforça os acertos e grita alto em busca de mais afeto.
A
roda, o circular infinito, faz com que o silêncio da partilha, a cada encontro
do Núcleo Mulheres Negras, seja preenchido de amor, cuidado e atenção uma com
as outras, é esse silêncio que desejamos. Nossos líquidos sagrados, sangue,
lágrimas, suor, saliva estão umedecendo cada vez mais nossos momentos,
posicionando nossos espelhos e nos refletindo uma para as outras. Somos espelhos
de mulheres negras.
Sejamos
noite e dia, luz e escuridão, para enxergamos tudo o que está cego; sejamos
amargor e doçura, frescor e ardor, para que cada uma perceba e escolha o que
fazer com sua indigestão; sejamos rios, riachos, mares, cachoeiras, lagoas,
goteiras, pororocas e tudo mais que for preciso para vazar e escorrer o ciclo
de renovação da vida. Com segurança e pertencimento, desejamos retomar a
direção com as próprias mãos, para que cada uma escolha por onde e com quem vai
continuar a navegar.
*Texto produzido para a publicação Sujeitos, cursos e percursos - Projeto Jovens facilitadores de práticas restaurativas. Abril/2016
http://cdhep.org.br/2015/wp-content/uploads/2016/04/Revista_sujeitosFrutosPercursos.pdf
*Texto produzido para a publicação Sujeitos, cursos e percursos - Projeto Jovens facilitadores de práticas restaurativas. Abril/2016
http://cdhep.org.br/2015/wp-content/uploads/2016/04/Revista_sujeitosFrutosPercursos.pdf