terça-feira, 27 de setembro de 2016

Núcleo Mulheres Negras: No grito mudo, ecoamos o rito da cor e trançamos histórias pretas! Carmen Faustino e Flávia Rosa



         Somos Mulheres Negras, a maioria na zona sul de São Paulo, a maioria nas inúmeras periferias desse mundão, a maioria no país. Mulheres negras, pobres, mães, filhas, bissexuais, lésbicas, heterossexuais e periféricas, que cotidianamente vivem uma avalanche de opressões, hostilidades e o não menos severo silenciamento de suas vozes, sua presença, seus amores e dores. Fomos jogadas em um abismo de escuridão, inércia e invisibilidade, que naturalmente sufoca, despreza e desqualifica profundamente todo o legado e grandeza que envolve o ser mulher negra.

Para elaborar uma reflexão com a complexidade e a humanização necessária, sobre as vivências, conflitos e ciclos de violências que envolvem as mulheres negras, na perspectiva das práticas da Justiça Restaurativa, se faz necessário uma boa e generosa dose de sensibilidade, empatia e percepção. Os olhares e raciocínio precisam estar em constante atenção, para que se atravesse a cortina de fumaça do racismo, abandono e solidão que encobre as verdadeiras histórias das mulheres negras, e se enxergue a realidade. Esse cuidado se estende ainda às armadilhas sociais que perpetuam em falsas idéias de pieguices e vitimismos, que perseguem as questões das mulheres negras.

Há séculos as mulheres negras são projetadas e vistas como mulheres submissas aos diversos grupos de poder econômicos e sociais. Somos vistas como as mulheres com corpos disponíveis e sexualizados, sem a necessidade de afetividade e respeito, as mulheres que são fortes e suportam todas as dores físicas e emocionais, as mães que podem criar sozinhas seus filhos, as mulheres que abrem mão de suas vidas para cuidar de outras, as mulheres que estão acostumadas a batalhar pelos seus objetivos,  que não reclamam e aceitam com humildade e gratidão, o pouco que é oferecido.

 Vivemos a desconfiança em torno da nossa capacidade intelectual nos espaços acadêmicos, profissionais e sociais, nos empurram para os trabalhos de subserviência, condenam nossos traços, a diversidade dos nossos corpos, a textura dos nossos cabelos, nossas escolhas afetivas e sexuais. São milhares de estigmas, e há séculos somos condicionadas e cobradas a corresponder expectativas, que nem sempre condiz com nossa real e reflexiva escolha.

A necessidade de socialização faz com que as muitas possibilidades de ser mulher negra sejam abafadas, por tentativas de enquadramentos que não nos cabem, nem nos contemplam. E não é permitido questionamentos, muito menos negar esse lugar dado, pois de nós, esperam sempre aceitação e o silêncio. 
  
Ser mulher negra é suportar as desconfianças e estereótipos que não escolhemos, mas que atravessam duramente o corpo e a alma, abrindo feridas latentes que não encontram alívio, cicatrização e se perpetuam ao longo dos anos. É ter que desenvolver ginga, malícia e aprender na marra, a manejar todas as ciladas e desafios que são oferecidos, travestidos de oportunidades, notoriedade e valor; é ter que levantar sozinha a cada rasteira e permanecer na estrada, pois o cansaço e a desistência não nos pertencem, nem teremos auxílio ou consolo, afinal nos consideram forte o bastante; é estar em punga e ser estrategista a todo o momento, para perceber a hora certa de transitar e gritar, se quiser ser vista e ouvida, mesmo constatando que muitas vezes ouvir não significa entender e respeitar.

Em uma sociedade, que vê o corpo de uma mulher negra servil e sem voz na mídia, ou sendo arrastado pelas ruas da cidade, com a mesma naturalidade hostil, ser mulher negra adoece a alma e mata nossos sonhos.   

Nessa trajetória de afrontamento e contínua busca pelo ser mulher negra em sua plenitude e integridade, encontramos inúmeros dificultadores, muita omissão, pouco preparo social e um enorme vazio nas ações voltadas às nossas especificidades. Não somos legitimadas em nossos discursos e muito menos amparadas pelas políticas públicas voltadas para a segurança, bem estar, saúde física, psíquica e emocional. O racismo, machismo e misoginia atingem fortemente os espaços públicos de saúde, educação e de leis de proteção e defesa, que deveriam como prioridade e dever, acolher e repudiar tais práticas. As maiorias de nós dependem e precisam desses serviços cotidianamente, portanto, também estamos submetidas às violências que são banalmente difundidas nesses espaços.     

 Ao pensarmos que a maioria da população de nosso país é mulher negra e periférica, conseguimos dimensionar o tamanho da violência praticada, do silêncio imposto e da negação do nosso existir. É desesperador pensar nas inúmeras e dolorosas consequências do grito entalado na garganta e do peso nas costa da maior parcela do nosso país.

Existimos e resistimos pelas muitas estratégias de sobrevivência que herdamos das nossas antepassadas e obrigatoriamente desenvolvemos nos cotidianos; resistimos pelos subterfúgios que atravessam o caminho e são transformados em oportunidades de superação e continuidade.

Nessa espinhosa caminhada, o tempo para o respiro, descanso e auto-cuidado são raros e escassos. Nossos corpos respondem ao abandono e com pouca percepção, as vidas de muitas de nós são tomadas pela dor, apatia e solidão.  

Temos um turbilhão infinito de emoções, emaranhadas e conflituosas, que também nos traz questionamentos e reflexões profundas sobre o lugar em que nos colocaram, os efeitos dessa subjetividade violentada e qual o caminho e lugar realmente desejamos ocupar e seguir. O que faremos por nós, para driblar esses perigos e sairmos do ciclo de dor e doença, uma vez que não podemos esperar ações de ninguém, pois é latente a falta de humanidade que é dada a negros e negras.

Ao longo da caminhada, uma certeza nos acompanha: Não aceitamos mais o lugar da invisibilidade e silêncio, e precisamos urgentemente cuidar de nós. Dentro de uma perspectiva contemporânea, se faz necessário desconstruir as mentiras, para se retomar o valor e respeito à ancestralidade das mulheres negras e o reconhecimento de suas trajetórias e contribuições no mundo. 

Ser Mulher Negra é possuir peculiaridades que nos enchem de conflitos e certezas. Um legado extenso demais para ocupar as pequenas páginas das histórias rasas e mal contadas que permeiam o imaginário social coletivo. As violências que sofremos desde que nos colocaram em diáspora, não é roteiro novelesco, não é mito, não é exagero, muito menos fraqueza! É perverso e cruel, traumatiza nossa humanidade, marca profundamente nossos corpos, atrofia e bloqueia nossos movimentos, nos tira a capacidade de doar e receber afeto, prazer, confiança e paz. 

Um feliz encontro nos proporcionou mergulhar no processo de construção do Núcleo Mulheres Negras. Juntas, abrimos um portal de possibilidades afetivas e a ampliação dos horizontes, que muitas vezes é limitado e ofuscado pela desconfiança e auto estima destruída. Transcendemos as imposições sociais e nos apresentamos aos espelhos de nós, nos presenteamos de afeto, doação e acolhida, ritual necessário para uma elaboração compreensiva e sensata das dores.

 O Núcleo Mulheres Negras nasceu de um silêncio herdado e ensurdecedor que ecoou na periferia sul de São Paulo em 2014. Mulheres negras que já se encontravam em outras estradas e que uma vez por mês, se juntam para elaborarem suas subjetividades conflituosas, carregadas de dores, alegrias e alívios. Um encontro que implodiu nossos corpos, sufocados das imposições sem escolha; transbordou alto e explodiu pelas bocas, corpos, poros e olhar. Foi parido no grito forte, fino e estridente, que urrou aos ouvidos menos atentos, despertou da doença racista que por muitas vezes nos deixa inertes e nos projetou uma nas outras.

 Nossos espelhos refletem igualdades e diferenças, força e fragilidades, lágrimas e sorrisos, quando nos colocamos em roda e olhamos umas nas outras em segredo, comungando de uma energia acolhedora, que nos permite demonstrar somente o que desejamos, mesmo que seja apenas naquele momento.

É urgente sair da dor, minimizar os efeitos das violências que recebemos e dignamente conseguir dizer não, para tudo àquilo que não aceitamos mais. Um poder que nos possibilita traçar a continuidade ou um novo caminho, com mais saúde, bem estar e decidir pelo que nos agrada; queremos ser mulher negra sem influências negativas e viver somente o que desejamos em nossas vidas.

As partilhas são repletas de momentos de fala, escrita e escuta, somos nós, nossa própria temática. As trocas de olhares e afagos acessam memórias e lugares esquecidos, não há espaço para o crivo do julgamento e podemos sucumbir como vier, pois a neutralidade é sensível e amorosa. No ápice das nossas emoções, percebemos a importância de localizar as doenças e expurgar o que não podemos mais carregar, para conseguir buscar entendimento e alternativas mais saudáveis para nossas vivências.

Descobrimos e construímos um espaço potencial de vida, repleto de sensibilidade, liberto de avaliações e pudores. Ser mulher negra é ter um universo dentro do peito e nossa roda de amor e cura, acomodam dignamente toda essa imensidão. Podemos escancarar tudo, ser e ter toda a intensidade que foi abafada ao longo dos anos. E a partir de um olhar panorâmico sobre nossa herança, entrelaçada na contemporaneidade que traz fortes dissabores e deleites, essa vivência nos projeta para horizontes mais saudáveis e prazerosos, que acalanta nossos pesares e reafirma com segurança, os momentos de alegria e prazer por completo, pois também nos pertence.  

É nosso lugar de potencialidade, criado na base do amor, para a cura das nossas. O Núcleo Mulheres Negras é feito de momentos únicos de intimidade coletiva e pessoal. A cada história parecida com as nossas e de tantas outras, os olhares e expectativas para a vida são renovados. Potencializar os momentos de escuta, olhar, compreensão e afeto, nos faz perceber que existe uma trajetória conjunta e que nossa subjetividade não pode mais ser abafada.

O maior exercício aplicado nas práticas da justiça restaurativa é o exercício do silêncio, para ouvir a si mesma e quem está com você. Não o silêncio doloroso da negação e desprezo que recebemos socialmente há anos, mas o silêncio que se relaciona e potencializa diretamente o alívio e conforto das companheiras, no momento em que cada uma faz a sua oração, joga para o círculo de paz e para o universo, o seu ser mulher negra, sem preocupações com o aval social, apenas deixando fluir os sentimentos diversos.

Percebemos que ser mulher negra é muito mais do que nós mesmas conhecemos. É aprendizado constante, exercício de autoconhecimento e das práticas de afeto e respeito pelas nossas histórias. Mulheres negras de diversas gerações, vivências afetivas, sexuais, familiares e sociais, partilham e experimentam o lugar da fala. Ouvir e confidenciar com mulheres mais velhas, crianças, mulheres casadas, solteiras, em singulares relações afetivas, de diversas profissões, vivências e anseios, reafirmam os propósitos que os processos de pertencimento são individuais, mas dialogam coletivamente.

Somos troncos de diferentes espessuras, folhas de diversas texturas e frutos de muitos sabores, mas partilhamos da mesma raiz.

São muitas histórias de continuidades e desconstruções que não cabem mais no silêncio. Os séculos emudecidos, aos pouco dão lugar ao exercício da oralidade e reaprendemos por meio da fala, a nos colocar no mundo. Uma herança fundamental para se retomar a circularidade natural das nossas vidas, pois desejamos a totalidade da nossa existência.

Somos descendentes das detentoras de saberes milenares, que aprenderam na observação e nas vivências individuais e  partilhadas, com o outro e com o universo. E generosas em atividade como sempre foram, nossas ancestrais partilharam e ainda partilham desse conhecimento, aprendem e ensinam quem tiver ouvidos e respeito para oferecer. Mulheres que avistam o céu prevendo dias de trovoadas, aguaceiros e terremotos, mas com a tranquilidade e a consciência da importância do movimento do mundo, acalentam os corações, na afirmação certeira que o brilho do sol virá ao final da tempestade.

Deusas da magia da vida, do sangue sagrado que fertiliza a terra, revitaliza o corpo e carrega o próximo. Somos a continuidade, que ginga os próprios desafios, reconhece os erros, reforça os acertos e grita alto em busca de mais afeto.  

A roda, o circular infinito, faz com que o silêncio da partilha, a cada encontro do Núcleo Mulheres Negras, seja preenchido de amor, cuidado e atenção uma com as outras, é esse silêncio que desejamos. Nossos líquidos sagrados, sangue, lágrimas, suor, saliva estão umedecendo cada vez mais nossos momentos, posicionando nossos espelhos e nos refletindo uma para as outras. Somos espelhos de mulheres negras.

Sejamos noite e dia, luz e escuridão, para enxergamos tudo o que está cego; sejamos amargor e doçura, frescor e ardor, para que cada uma perceba e escolha o que fazer com sua indigestão; sejamos rios, riachos, mares, cachoeiras, lagoas, goteiras, pororocas e tudo mais que for preciso para vazar e escorrer o ciclo de renovação da vida. Com segurança e pertencimento, desejamos retomar a direção com as próprias mãos, para que cada uma escolha por onde e com quem vai continuar a navegar.  

*Texto produzido para a publicação Sujeitos, cursos e percursos - Projeto Jovens facilitadores de práticas restaurativas. Abril/2016

http://cdhep.org.br/2015/wp-content/uploads/2016/04/Revista_sujeitosFrutosPercursos.pdf

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Um samba para cantar, um poema para inspirar... Disritmia




"Eu quero me esconder debaixo
Dessa sua saia, para fugir do mundo..."

Nego
Pode vir
Se embrenhe nessa mata
Meu tecido colorido de vida
Recebe com ânsia
Seu coração vagabundo

Se esconda de tudo
No emaranhado de pelos
Cabelos
Entre minhas pernas
Te dou abrigo

Se atente
Meu coração confesso
Cabe o dengo do mundo
Quer flores no caminho
Não aceita mais atrito
Ande em paz comigo

Minha saia rodada
Gira ventania 
Tem lanças nas pontas
E trama ardilosa nos tecidos
Rede armadilha para invasões
Proteção contra conflitos
O samba em nosso ritmo

Vivo contigo na boemia
Beijo e café
Curam o porre
Mas se cambalear
Em nosso livre trato
Te deixo hipnotizado
Perdido
Em sua disritmia

Sem meu acalanto
Sem a minha calmaria...

Carmen Faustino

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

CHUVA DE VERÃO





O tempo fechou
Escureceu
O roçar no pescoço me assanha
No ouvido previsões de desejo
São seus crespos embaraçando meu eixo

Raios luminosos
Acendem meu pavio
Calor no peito, cada toque é um choque
Meus pelos em suas mãos provocam trovões
Estremecem minha semente germinada

Rajadas de vento
Assoviam fundo em meus sentidos
Pela brisa úmida me deixo levar
Em alerta, meus bicos endurecidos anunciam tempestades

Você, sem guarda-chuva
Eu, toda molhada
Irrigada pelo arado da sua língua
Terra adubada, fruta madura, mata ocupada

Gota a gota a sede é saciada
É chuva de verão
Águas de perfume
Quentes como a estação
Escorrem dentro e fora

É mar, rio, cachoeira de tesão...

Carmen Faustino
*Publicado na antologia erótica Pelos Quartos do coletivo Louva Deusa em 2015

COROA

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Ela merece uma coroa...
Por todo o axé que carrega no peito
Pelo marfim estampado sorriso, refletido nos olhos
Por ter na pele o brilho do sol, e da lua
Pelos crespos, ostenta a resistência.

Ela merece uma coroa
Por se filha da luta, dignidade na labuta
Pela cabeça erguida, mesmo quando vista nua
Pelas tristezas que viu banhadas de sal
Por doação aos deuses, busca do amor ancestral

Ela merece uma coroa
Por saber que existe uma história velada
Pela língua afiada, sempre alerta
Pela malicia e ginga dosada na espera

E sua coroa é única
Ela é herdeira da verdade
E quando chegar o dia de sua coroação
Ela estará pronta para reinar
Na certeza que sua passagem não será em vão!

Carmen Faustino
*Publicado na antologia Pretextos de Mulheres Negras, organizado por Carmen Faustino e Elizandra Souza em 2013.